O BCE deve ou não baixar as taxas de juro?
O Banco Central Europeu tem resistido às pressões para baixar as taxas de juro com o argumento de que é necessário controlar a inflação. Esta atitude demonstra miopia ou mesmo cegueira perante os acontecimentos que se estão a desenrolar a uma velocidade vertiginosa.
[entretanto, o BCE baixou as taxas em 0.5%, mas vejam a opinião deste assíduo comentador do canal Bloomberg]
O principal perigo que a economia internacional enfrenta não é a inflação, mas sim a deflação, ou seja, uma depressão económica profunda, acompanhada da redução generalizada dos preços e salários.
Essa deflação está já a acontecer nos preços da habitação nos EUA (quedas percentuais de 2 digitos) e no Reino Unido.
A crise do crédito (“Credit Crunch”) está a paralisar a actividade económica. A negociação de papel comercial nos EUA sofreu uma forte redução (The U.S. commercial paper market has dropped $264 billion in four weeks and fell $56.4 billion, or 3.5 percent, to a seasonally adjusted $1.55 trillion for the week ended Oct. 8, the Fed said; fonte Bloomberg). A desconfiança instalada entre os próprios bancos está a fazer disparar a LIBOR e a EURIBOR, indexantes de stocks de dívida gigantescos (só os relativos à LIBOR ascenderão a 350 biliões de dólares 350*10^12, segundo o blog “debtonation”); os “spreads” estão a aumentar e a dificuldade em obter crédito está a alastrar ao ponto de a próxima dor de cabeça da Federal Reserve dos EUA ser a resposta a dar aos pedidos de auxílio dos governos estaduais, locais, empresas de serviços públicos como a electricidade (“utilities”) e até grandes empresas privadas : “Fed May See Lending to Companies, States as Next Crisis Fronts”
Os bancos estão descapitalizados porque adquiriram activos sem valor. A compra desses “activos” - que não eram mais que títulos de dívida - serviu para alimentar um crescimento económico assente no consumo, sobretudo nos EUA. A festa acabou, pelo menos para alguns, a maioria! Não há dúvida que os bancos precisam de ser re-capitalizados (“bail-out”), mas não de qualquer forma. Os grandes accionistas e investidores, bem como os gestores, devem ser penalizados. No entanto, parece ser o contribuinte e o pensionista a sair prejudicado. Claro que nalguns casos, estas figuras se confundem. Os fundos de pensões, por exemplo!
Como diz Ann Pettifor, a criação de crédito numa economia moderna desregulamentada não derivou das poupanças acumuladas depositadas nos bancos, mas precisamente o contrário, ou seja, foi o crédito que gerou depósitos. A criação de moeda, e a consequente montanha de dívida gerada, foi obra de um sector bancário sem freio. Daí o problema da alavancagem do sistema financeiro, ou seja, os bancos emprestaram muito acima (várias vezes, em alguns casos dezenas de vezes!) dos depósitos que suportavam esses créditos. Agora que a economia está à beira da recessão, os bancos vêem-se a braços com dívidas incobráveis e sem liquidez. De modo que a reposição de alguma liquidez não vai aumentar a massa monetária, vai simplesmente compensar o seu desaparecimento no buraco negro da dívida titularizada sem valor.
Além disso, nas últimas décadas, observou-se uma gigantesca concentração do rendimento e da riqueza (ver artigo do Michael Moore – este refere que as 400 pessoas mais ricas dos EUA concentram tanto rendimento quanto 150 milhões de americanos, metade da população!). O aumento do preço do petróleo também contribuíu (e continuará a contribuir) para a transferência e concentração de riqueza num punhado de países e famílias.
Todos estes factores são indutores de quebra acentuada da actividade económica. O risco maior é portanto de uma profunda deflação. O Japão, por exemplo, vive em deflação/estagnação há cerca de 15 anos. Mesmo o aumento acentuado do preço do petróleo, embora numa fase inicial possa pressionar o índice de preços, tende, devido à transferência maciça de rendimento, a provocar um efeito deflacionista. É o que está a acontecer nos EUA, com a redução já significativa do consumo de gasolina e “jet fuel”.
A desregulamentação dos mercados financeiros permitiu o acesso ao mercado de crédito a actores cuja actividade principal (“core business”) não era a concessão de crédito, nomeadamente grandes empresas industriais e de comércio. Temos, por exemplo, a General Electrics a conceder crédito de curto prazo através do nosso conhecido GE Money, tivemos a Siemens a lucrar mais com operações financeiras do que com a sua actividade fundamental de produtor de equipamentos (ver a “Armadilha da Globalização, Terramar 1998”).
Estes casos traduzem um padrão – da chamada “economia de casino” que consiste em fazer dinheiro a partir do dinheiro – que se reflectiu numa divergência entre as taxas de lucro e as taxas de acumulação, entendendo-se estas como taxas de investimento líquido, ou seja, taxas de variação da capacidade produtiva. Como é evidente, não é possível sustentar indefinidamente uma economia de casino.
Esta concentração de rendimento e da riqueza, acentuada por altas taxas de juro reais e deflação num contexto de uma gigantesca montanha de dívida é uma verdadeira bomba atómica!
O que nós precisamos é de inflação, para erodir esta dívida! Um funcionamento “são” de uma economia “capitalista” depende de uma certa redistribuição do rendimento e da riqueza!
Claro que não chega baixar as taxas de juro dos bancos centrais, como se viu hoje , é necessário ir mais além e exigir a alteração de um sem número de arranjos institucionais. É necessário, por exemplo, exigir que a prerrogativa de fixar todas as outras taxas saia da órbita de um pequeno grupo privado, como também recomenda Ann Pettifor.